Testes rápidos para detectar HIV, sífilis ou hepatite, exame para diagnosticar doenças graves em recém-nascidos ou para controle de doenças crônicas como hipertensão e diabetes, além dos preventivos, como o do câncer de colo do útero. Esses são apenas alguns dos exames que são feitos no Sistema Único de Saúde (SUS) e que devem sofrer impacto a partir de hoje em Santa Catarina.
Até então eles eram feitos, na maioria dos casos, por enfermeiros, mas uma liminar da Justiça Federal, que atendeu a um pedido do Conselho Federal de Medicina (CFM), proibiu a requisição de exames e consultas pelos profissionais na atenção primária. A decisão assinada em 27 de setembro gerou um clima de incerteza no atendimento dos postos de saúde em SC. O Conselho Regional de Enfermagem (Coren/SC) definiu ontem acatar a orientação do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) para que os enfermeiros atendam a liminar e não realizem mais a solicitação de exames. A definição foi informada a todos os municípios e já começa a valer.
– Temos preocupação com o atendimento seguro e de qualidade à população, por isso sabemos a importância do trabalho em equipe e lamentamos esse episódio que acaba sendo um retrocesso no SUS – reforça a presidente do Coren, Helga Bresciani.
A responsável técnica pela enfermagem da Secretaria de Florianópolis, Elizimara Siqueira, afirma que mais de 50% dos atendimentos na rede de atenção básica da Capital – postos e centros de saúde – são feitos por enfermeiros e que a medida impacta diretamente no cuidado à população:
– O sistema não tem como absorver essa demanda de exames. A população não vai ter esse atendimento e se tiver vai ser muito reduzido, menos de 10% do que é ofertado hoje.
Como exemplo, ela cita que apenas ontem, em função do Outubro Rosa, seriam feitos 500 exames preventivos do câncer do colo do útero nas unidades de saúde de Florianópolis, onde atuam 154 enfermeiros. Além dos preventivos da saúde da mulher, os profissionais também fazem acompanhamento pré-natal e de mulheres que acabaram de ter filhos. Outro impacto será nos testes do pezinho, que até então eram feitos por equipes de enfermagem:
– Vai burocratizar. A mãe vai chegar com o bebê e vai ter que passar por uma consulta para o médico prescrever o teste. Antes, ela entrava, fazia e ia embora, depois de uma consulta com o enfermeiro.
Laura Castilho, enfermeira do SUS há 10 anos, destaca que os profissionais atuam em equipes multidisciplinares, o que é o princípio básico da atenção primária:
– A gente não quer ser médico e não quer fazer coisas que não são da nossa profissão, só quer atender bem os pacientes. Tomamos decisões compartilhadas, somos uma equipe. A liminar está engessando o atendimento e fazendo com que o acesso dos pacientes seja ainda mais difícil, contribuindo para que o SUS se torne inviável – diz Laura, que atua no centro de saúde da Armação, em Florianópolis.
A liminar não é unanimidade nem entre os médicos. Para a presidente da Associação Catarinense de Medicina de Família e Comunidade, Marina Galhardi, a decisão vem de pessoas que não conhecem e não entendem o contexto de trabalho do enfermeiro, sobretudo na atenção primária.
– O enfermeiro e o médico podem compartilhar ações que ambos fazem, mas na grande maioria das vezes o enfoque e o olhar sobre elas é bastante diferente. Da mesma forma que o médico não pode ser substituído pelo enfermeiro, o enfermeiro não pode ser substituído pelo médico.
Ela acrescenta que os impactos no SUS “serão imensos”, pois diminui o acesso dos pacientes e aumenta a lentidão do sistema.
– Em todas essas situações, como sempre, quem perde é a população – resume.
Impasse longe de uma solução
A liminar suspende parcialmente a Portaria 2.488, de 2011, do Ministério da Saúde. O juiz federal Renato Borelli avaliou que a portaria foi além do que permite a lei que rege a prática da enfermagem ao permitir a requisição de exames por enfermeiros, o que faz com que “realizem diagnósticos sem orientação médica”.
O Ministério da Saúde discorda. Em nota, diz que vai recorrer da decisão e que as atribuições dos enfermeiros descritas na nova Política Nacional de Atenção Básica estão totalmente de acordo com a legislação brasileira. “A iniciativa foi debatida com a sociedade e aprovada com representantes dos estados e municípios”, acrescenta. O Cofen pediu reconsideração da decisão ao juiz. Segundo a entidade, nem sempre as equipes de saúde estão completas, principalmente em cidades mais pobres, nas quais enfermeiros são fundamentais.
O Conselho Regional de Medicina de SC não quis se manifestar sobre o assunto. Em nota, com o CFM, afirma que a sentença não prejudica a assistência oferecida, “já que não proíbe os profissionais de saúde de repetirem tratamentos e análises laboratoriais previamente solicitadas por médicos”. A nota destaca ainda que a portaria do Ministério da Saúde “abre espaço para a invasão das atribuições dos profissionais da medicina que, pela Lei do Ato Médico, detêm a exclusividade dessas ações”.
POR DENTRO DA LEI
O que diz a portaria 2.488, de 21 de outubro de 2011 do Ministério da Saúde, que está sendo questionada pelo Conselho Federal de Medicina:
ATRIBUIÇÕES DO ENFERMEIRO
Realizar atenção a saúde aos indivíduos e famílias cadastradas nas equipes e, quando necessário, no domicílio ou nos demais espaços comunitários (escolas, associações etc), em todas as fases do desenvolvimento, desde infância até terceira idade
Realizar consulta de enfermagem, procedimentos, atividades em grupo, solicitar exames complementares, prescrever medicações e encaminhar, quando necessário, usuários a outros serviços
Contribuir, participar, e realizar atividades de educação permanente da equipe de enfermagem e outros membros da equipe
ATRIBUIÇÕES DO MÉDICO
Realizar atenção a saúde aos indivíduos sob sua responsabilidade
Realizar consultas clínicas, pequenos procedimentos cirúrgicos, atividades em grupo na unidade básica e, quando necessário, no domicílio ou nos demais espaços comunitários (escolas, associações etc)
Encaminhar, quando necessário, usuários a outros locais de atenção
Indicar, de forma compartilhada, a necessidade de internação hospitalar ou domiciliar, mantendo a responsabilização pelo acompanhamento do usuário
ENFERMEIROS EM SC
Total de profissionais (não apenas os que atuam na atenção primária) em Santa Catarina
2014: 11443
2015: 12117
2016: 12787
2017: 13156
Fonte: Coren-SC
Por Karine Wenzel
Diário Catarinense