Rui Car
23/10/2019 16h10 - Atualizado em 23/10/2019 14h03

O filme ‘Coringa’ deve incentivar você a conversar sobre doenças mentais

"A pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você se comporte como se não as tivesse"

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“A pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você se comporte como se não as tivesse”. A frase é uma das muitas que Arthur Fleck, personagem principal do filme Coringa, escreve em seu diário psiquiátrico. A trama, que estreou nos cinemas mundo afora em outubro deste ano, fez com que muitos espectadores saíssem do cinema um tanto quanto incomodados. Por quê?

 

Segundo o Dr. Luiz Guimarães, psiquiatra assistente na clínica Holiste, o que gerou esse incômodo em massa com o filme foi a forma como a violência utilizada é próxima do mundo real. O longa, apesar de contar a história de um personagem fictício, que vive em uma cidade fictícia, Gothan City, retrata uma realidade que pode parecer extrema, mas é muito mais próxima do que se imagina.

 

“É a identificação do espectador com esse tipo de violência, ao contrários de outros filmes, como o Rambo ou John Wick, nos quais a violência é usada de maneira esvaziada, que deixa o público menos impactado”, explica.

 

Não à toa, o filme foi considerado bastante problemático em alguns mercados, em especial o norte-americano, e muitos jornais o classificaram como um glorificador da violência. Em um país onde aconteceram mais de 2.200 atentados em massa com armas de fogo desde o caso do colégio Sandy Hook, é compreensível a dificuldade do público em aceitar um filme mostre a trajetória de um homem branco que usa as injustiças pelas quais passou como um catalisador para a violência. É impossível também não lembrar que, em 2012, um homem vestido como o Coringa abriu fogo contra um cinema lotado durante uma sessão do filme Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge no Colorado.

 

Mas assim como videogames não são responsáveis pelo comportamento violento de alguém, o mesmo pode-se dizer dos filmes – que podem ser vistos como ferramentas de conversas importantes. Para Luiz, o filme coloca o foco na doença mental do personagem principal e como, ao longo do filme, o seu problema escalona pela falta de cuidado frequente – e deixa claro que Arthur têm um transtorno psíquico sério.

 

“O personagem principal possivelmente apresenta uma síndrome, denominada síndrome pseudobulbar. Classicamente, se caracteriza por dificuldade para falar e para engolir adequadamente, alteração na movimentação dos músculos da face e da língua e labilidade emocional (riso ou choro inadequados, exagerados ou desproporcionais a um evento)”, explica o médico neurocirurgião e neurocientista Dr. Fernando Gomes, professor livre docente do Hospital das Clínicas e da USP.

 

De acordo com o profissional, essa síndrome pode desencadear depois de um AVC, trauma de crânio, por conta de uma esclerose múltipla ou outras doenças neurológicas do cérebro. O tratamento envolve uma abordagem multidisciplinar e reabilitação (neurologia, fonoaudiologia, fisioterapia, terapia ocupacional e psicologia) e medicamentos sintomáticos para evitar que o comportamento violento e inadequado possa propagar ainda mais em decorrência do problema. Ou seja, se esse é o caso ou não, é preciso ter mente que transtornos como esse precisam de um acompanhamento próximo e constante para não culminar em episódios de violência.

 

Joaquin Phoenix como Coringa (Foto: Divulgação)
Joaquin Phoenix como Coringa (Foto: Divulgação)
 

Cuidado mental é questão de saúde pública

Em Coringa, Arthur deixa de seguir com o tratamento porque recebe a notícia de que o centro onde faz terapia e consegue as receitas para os seus remédios vai fechar.

 

As doenças mentais são multifatoriais, e devem ser analisadas segundo uma visão mais abrangente, que conta com influências sociais, genéticas, ambientais e de desenvolvimento. Por isso dizer apenas que a vida complicada de Arthur é o que justifica o seu comportamento não é correto. Existe tanto as condições em que foi criado, a relação com a mãe, com a seriedade do seu tratamento e até o tabu em torno do assunto, que impede conversas francas e gera preconceitos em torno da sua história.

 

“A doença mental não se manifesta de uma hora para outra. Os pacientes vão dando sinais de seu adoecimento ao longo do tempo e, quando não tratados, podem se tornar violentos”, continua Luiz. “Vale ressaltar que a maior parte da violência é contra si mesmo, vide as estatísticas do suicídio”.

 

No mundo, mais de 322 milhões de pessoas já foram diagnosticadas com depressão, uma das doenças mentais mais conhecidas atualmente. Segundo a Organização Mundial de Saúde, será também considerada a doença mais incapacitante do mundo até 2020.

 

Mais preocupante ainda – e o que deixa a história de Arthur ainda mais próxima da realidade -, é que de acordo com a Organização Pan-Americana de Saúde, menos da metade das pessoas afetadas pela doença recebem o tratamento adequado para tratá-la.

 

Os números altíssimos de suicídio no mundo também comprovam como a falta de atenção ao assunto gera sérias consequências: é a segunda causa de morte entre jovens de 18 e 25 anos, e uma pessoa a cada 40 segundos tira a própria vida no mundo.

 

Surtos de violência extrema podem, sim, ser evitados – desde que o paciente seja diagnosticado precocemente e tratado de maneira eficaz, com uma combinação de medicações, terapias e internações, caso seja necessário. Mas é preciso traçar um caminho até que esses diagnósticos sejam efetivos: tudo começa com incentivar a conversa sobre o assunto.

 

“Falar de saúde mental é importante, pois tira da escuridão algo que não deveria estar lá. É falar em doenças que são tão incapacitantes e/ou letais quanto qualquer outra; veja as estatísticas para afastamento do trabalho, onde você encontrará as doenças mentais figurando entre as principais causas”, diz Luiz.

 

Para o psiquiatra, falar sobre o tema diminui o estigma, favorece o diagnóstico precoce e facilita o tratamento adequado. Um exemplo, segundo ele, é o câncer de mama e a própria HIV/Aids, que foram alvo de campanhas de conscientização fortes e deixaram de ser um tabu tão grande na sociedade. “Quanto mais a doença mental for debatida de forma responsável, ampla e aberta, menor será o estigma sobre ela”, completa.

 

Fernando reforça a importância de esses quadros sempre receberem o acompanhamento adequado – e como esse é um dos fatores essenciais de melhora. “A melhor maneira de tratar tudo isso é sempre contar com acompanhamento de uma equipe de saúde multidisciplinar. Os problemas mentais não podem ser ignorados – nunca!”, diz.

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