Rui Car
14/12/2018 09h47 - Atualizado em 14/12/2018 09h49

Missionário americano atua há 10 anos como o único médico de 1 milhão de sudaneses

Tom Catena atendeu cerca de 400 pessoas por dia

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O Sudão coleciona uma série de posições em rankings que não são nada invejáveis. É o quinto país que mais sofre com a fome no mundo, o quarto mais corrupto, o sétimo pior em liberdade de imprensa e o quinto com o mais baixo índice de desenvolvimento humano (IDH). É nesse contexto que vive o médico norte-americano Tom Catena, de 54 anos. Atuante nos montes Nuba, no sul do país, ele é o único médico em meio a uma população de cerca de 1 milhão de pessoas.

 

Na média dos dez anos, o médico atendeu cerca de 400 pessoas por dia e fez mais de mil cirurgias por ano. “No último ano pararam os combates, mas há 7 ou 8 anos, durante a guerra civil, tivemos muitos soldados e civis gravemente feridos, pelos tiros e bombardeamentos. Houve muitas coisas terríveis que tivemos de assistir e cuidar, muitas amputações. Mas eu prefiro estar lá e tratar desses problemas, do que estar em qualquer outro lugar do mundo”, conta ele à Rádio Renascença, de Portugal.

 

Quem envia os bombardeios é o próprio presidente do país, Omar al-Bashir, à frente de um regime ditatorial militar desde 1989. “Estamos em um lugar em que o governo não tenta nos ajudar – tenta nos matar”, descreve o médico. A situação de guerra se acalmou no último ano, mas o clima ainda é de tensão. Além disso, existem outros problemas: doenças tropicais típicas, má nutrição, diarreia. “As pessoas têm esses problemas aparentemente simples, mas que sem o devido tratamento se tornam coisas graves”, esclarece Catena.

 

“É difícil interagir numa sociedade a que não estamos habituados, vir do outro lado do mundo onde as coisas se fazem de outra maneira, onde estamos habituados a ter eficiência e a ter as coisas rapidamente feitas, e entramos numa realidade onde isso não é a norma”, confessa. “Então, tentei adaptar-me a esse modo de vida, e percebi: ‘Ok, você não está nos Estados Unidos, aqui é assim que se fazem as coisas. Tente se adaptar a esta realidade, faça o que pode e vá em frente’”.

 

Com todas as dificuldades, Catena se adaptou bem: em 2016, casou com uma nativa de Nuba, Nasima, uma enfermeira. Desde que chegou em Nuba, aumentou os leitos do Hospital Mãe de Misericórdia, onde atua, de 80 para 435. O hospital pertence à Diocese de El Obeid. Catena visita todos os leitos às segundas, terças, quintas e sábados. Às quartas e as sextas ficam para as cirurgias.

 

“Um privilégio”

Em 2015, Catena foi escolhido como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo pela revista Time. No ano seguinte, o médico protagonizou um documentário chamado The Heart of Nuba (“O coração de Nuba”, em tradução livre), dirigido por Kenneth A. Carlson. E em 2017, foi laureado com o Prêmio Aurora para o Despertar da Humanidade, atribuído pela Aurora Humanitarian Initiative, uma ONG criada em 2015 por três descendentes de vítimas do genocídio armênio.

 

Catena, entretanto, não se sente um herói. “Para mim é um privilégio trabalhar com essas pessoas. Eu sinto uma firme obrigação de fazer o meu melhor para cuidar delas”, confessa. “Sinto que, se eu as deixasse, estaria desistindo. Ver a própria resiliência dos pacientes me encoraja. Ver como eles sofrem coisas que você não consegue sequer imaginar – e permanecem calmos, capazes de rir, de brincar e de levar a vida adiante. Quando você vê isso, se pergunta: ‘Como posso desistir e ir embora?’”

 

“Estou fazendo o que penso que é preciso ser feito, faço o que sinto como natural para mim, este é o meu trabalho: acordar de manhã, ir ver os doentes, cuidar dos que sofrem, se têm feridas, trato-as”, conta o médico. Na terça-feira (11/12), Catena foi designado presidente da ONG que o premiou há um ano e meio – mas não vai deixar o Sudão, exceto por no máximo três meses ao ano. “Vejo isso como uma nova fase, um período de tempo em que tentarei amplificar o trabalho que fazemos em Nuba, e também para ajudar essa organização humanitária”, explica.

 

No cargo, Catena pretende pressionar a comunidade internacional a voltar o seu olhar para a situação do Sudão. “Através dos canais diplomáticos deviam pressionar mais para haver um acordo de paz, trabalhar a sério com ambos os lados, tentar entender o lado de quem está em Nuba. Por que é que eles combatem o governo há 34 anos?”, diz. “Acho que esta pressão podia ser exercida pelo lado norte-americano e pelo lado europeu, que continuam a ter uma grande influência dentro das Nações Unidas, e não têm feito tudo o que podiam fazer”.

 

“Foi a fé”

Filho de imigrantes italianos, Catena chegou ao Sudão através do projeto Missão Médica Católica. “Cristo diz-nos para ajudarmos os irmãos e irmãs, portanto foi um chamamento muito direto o que senti”, conta. Formado inicialmente em engenharia, se sentiu chamado à medicina e à missão, formou-se pelo Duke University e atuou como voluntário no Quênia durante 8 anos antes de chegar ao Sudão. Mas não estava satisfeito.

 

“Eu estive em hospitais de missão que já estavam bem consolidados. Queria ir a algum lugar que estivesse começando do zero, alguma região remota”, explica. “Queria ir onde não havia outros médicos nem outros hospitais. Enquanto pensava sobre isso, ouvi falar de um hospital nos montes Nuba que o bispo Macram Max Gassis estava construindo”. As freiras e padres combonianos atendem a região, onde cerca de 40% da população é católica e 60% muçulmana.

 

“Foi a fé que me empurrou para ir para as montanhas de Nuba e é a fé que me tem mantido lá. Sem isso acho que não conseguiria ficar por 10 anos e querer continuar”, afirma. “São Francisco de Assis dizia para evangelizar sempre, e às vezes usar palavras. A ideia é que os outros vejam Cristo em você pelas suas ações, e então o que você disser fará mais sentido. Eu levo esse conselho a peito, acho que é uma maneira maravilhosa de encarar o trabalho missionário”.

 

Foi o que o fez decidir permanecer em Nuba após o início da guerra civil, em 2011. “Se eu fosse embora, as pessoas não teriam mais nenhum tipo de cuidado. Então decidi ficar. Foi um momento de clareza moral. Nós nos dizemos missionários, mas quando a coisa fica preta, abandonamos o barco. Não se trata exatamente de um testemunho cristão…”, afirma.

 

 

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